Fundamentação Teórica



a) Memória


Memória é lugar de temporalidades. É fenômeno social que se desenvolve ao longo do tempo, determinado de forma coletiva e/ou por percursos individuais (mesmo que resultado de ações da coletividade). A memória social de determinada comunidade está diretamente ligada, também, ao seu patrimônio. Em grande parte, é ela fator responsável pela mutabilidade e dinâmica da tradição dos bens culturais de um dado território.
Assim como o património cultural (ou como um património cultural), a memória social é dinâmica, mutável e seletiva; seletiva porque nem tudo o que é importante para o grupo fica «gravado na memória», fica registado para as gerações futuras (RODRIGUES, Donizete. Património cultural, Memória social e Identidade: uma abordagem antropológica. p. 5).

A memória histórica, social e cultural presente em um território é fruto de um passado vivenciado, em que acontecimentos ocasionados são trechos importantes para a consolidação da história da sociedade e da cidade em si. Memória é reforço da continuidade e preservação dos bens culturais e isso está diretamente ligado à identidade de um povo, sendo constantemente legitimada, reforçada e reproduzida por meio do fortalecimento de processos sociais e históricos.
Em se tratando de memória, deve-se entender o sistema em que ela está inserida. Sistema aqui deve ser compreendido como qualquer elemento que existe no Universo. De acordo com a Teoria Geral dos Sistemas os três parâmetros básicos para compreendê-los são o ambiente, a permanência e autonomia. Esses parâmetros já nascem com os sistemas, estão intimamente conectados e possuem uma certa hierarquia.
O ambiente ou sistema ambiente é onde um sistema está inserido. É com o ambiente que os sistemas fazem as principais e a maioria de suas trocas, sejam energéticas ou informacionais. É através do ambiente que um sistema consegue o suporte necessário para seu segundo parâmetro básico, que é a permanência.
O terceiro parâmetro básico é a autonomia. Para permanecer, os sistemas criam um “arquivo” onde estão as soluções para as diversas situações da vida e armazenam a informação contida no ambiente que lhes dá suporte para a permanência. A isso se chama “função memória”, que garante a autonomia de um sistema para permanecer, elaborando as informações contidas no ambiente. Quanto melhores forem as informações, melhor é a elaboração da “função memória”, gerando sistemas cada vez mais complexos, o que garante maior possibilidade de permanência.

O ambiente é um sistema que involucra um determinado sistema. No sistema ambiente encontramos todo o necessário para as trocas entre sistemas, desde energia até cultura. Como resultado da interação entre o sistema e seu ambiente, trocas energéticas e entrópicas  levam o sistema a internalizar informações, desde diversidade material e energética até diversidade sígnica. À medida em que esta internalização ocorre, ocorre um armazenamento no sistema. É o que se chama Autonomia, que além de garantir alguma forma de permanência, tem também um carácter histórico, gerando o que se pode chamar “função memória”. Esta conecta o sistema presente a seu passado, permitindo possíveis futuros.” (Vieira, Jorge de Albuquerque. Ontologia Sistêmica e Complexidade: formas de conhecimento - arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. Pág.33-34).

b) Inventário: proteção e valorização da memória

“Para proteger temos que conhecer. Para conhecer temos que inventariar”.
(Premissa retirada do Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Minas Gerais - IPAC/MG)

Quando observado este cenário, levando em consideração suas implicações sobre o patrimônio cultural coletivo, histórico e documental, tudo isto torna-se bastante nocivo. Sabemos da importância de se construir a memória, e de se conhecer o passado para se criar uma identidade como povo, para definição e sedimentação da cultura, com a criação de uma crescente Autonomia.


[...] a tradição é um meio de identidade. Seja pessoal ou coletiva, a identidade pressupõe significado; mas também pressupõe o processo constante de recapitulação e reinvenção [...]. A identidade é a criação da constância através do tempo, a verdadeira união do passado com o futuro antecipado. Em todas as sociedades, a manutenção da identidade pessoal, e sua conexão com identidades pessoais mais amplas, é um requisito primordial de segurança ontológica. Esta preocupação psicológica é uma das principais forças que permitem às tradições criarem ligações emocionais tão fortes por parte do ‘crente’. (GIDDENS, 1997, p.100).


O que GIDDENS toma por tradição, embora seja associado à primeira vista a elementos intangíveis (costumes, práticas, saberes), também pode ser aplicado a objetos mais concretos, como o patrimônio edificado de uma cidade. “A tradição implica uma visão privilegiada do tempo; mas também tende a exigir o mesmo do espaço.” (Ibidem, p.101). Este “espaço diferenciado”, meio onde se desenvolvem as práticas sociais, por meio destas garante a existência de um “tempo contínuo” (LEITE, 1995).

É através dessa relação entre espaço e tempo que os indivíduos de um determinado povo se vêem como semelhantes, estabelecem sentidos de pertencimento, reconhecem o que consideram familiar e estranho. Tais processos são responsáveis pelo funcionamento de um povo como um sistema coeso, contribuindo para a formação da “função memória”, pela busca de sua “permanência” (VIEIRA, 2008).

Aplicando essa visão à nossa realidade local, podemos perceber o quão periclitante nossa situação está. Nos pólos mais antigos de aglomeração urbana (assim como em todo o resto da cidade) vigora a lógica capitalista do lucro rápido e fácil em detrimento do que é cultura e tradição.
Vemos bairros como o Centro, Jacarecanga, Aldeota, Parangaba, Messejana escondendo ou destruindo alguns importantes exemplos de nossa modesta arquitetura para o melhor posicionamento de placas e letreiros, subvertendo a função social da propriedade com a abertura de numerosos estacionamentos particulares, aniquilando conformações urbanas para a construção de enormes torres, que além de seu gosto duvidoso e de sua escala grotesca, ainda voltam grandes muros para as vias, tornando-as desertas e inseguras.
Além da preservação da riqueza de bens materiais, Fortaleza também é rica diversidade de expressões e representantes das culturas populares tradicionais, tais como artesãos, violeiros, emboladores, repentistas, forrozeiros, quadrilheiros, pescadores artesanais, cordelistas, atores, bonequeiros, contadores de causos e anedotas, brincantes de folguedos e danças populares, cantores, poetas, rezadeiras, curandeiros, entre outros. Muitas destas expressões acontecem nas tradições dos grupos, nos eventos folclóricos, nos terreiros dos grandes mestres, nas vivências das escolas públicas e privadas, nos teatros, praças, ruas, feiras populares dos diversos bairros da cidade, terminais de ônibus e ainda em equipamentos do poder público municipal, além de equipamentos de entidades privadas e organizações da sociedade civil.
As manifestações culturais estão condicionadas à existência de pessoas que as transmitam para as próximas gerações. Entretanto, os saberes e fazeres das tradições populares se encontram em constante ameaça de desaparecimento por cada vez menos encontrarmos pessoas dispostas a levá-los à frente. Saber o que se têm na cidade, por meio de um inventário é conhecer e poder atuar no fomento das atividades da cultura popular.

Desta forma, cientes da importância de contar com as informações contidas no ambiente, informações que nos geraram enquanto sociedade e compuseram a genética de nossa gente, no intuito de gerar nossa função memória, para que possamos permanecer enquanto coletividade, trazemos a premissa básica de que “para proteger temos que conhecer; para conhecer temos que inventariar”.

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